sábado, 28 de fevereiro de 2009

Carta de despedida.

A quem possa interessar.
Vou dar um tiro na cabeça mas quero deixar aqui a explicação pois não quero ser considerado louco nem cobarde mas sim uma pessoa que está cansada e anseia pelo descanso que qualquer ser humano tem direito.
Eu explico:
Nasci há 450 anos, tendo tido uma infância e juventude normal ou o mais parecido ou integrado no que era padrão naqueles tempos e durante esses tempos nunca me apercebi da pequena diferença com que eu tinha nascido.
Essa diferença só se tornou obvia quando com sessenta e muitos anos comecei a comparar-me com o meu amor de vida, a minha mulher de quem eu tinha tido 4 filhos, já adultos nessa altura. Num jantar de aniversário da minha mulher um amigo de um dos meus filhos perguntou-me onde estava o marido da aniversariante, tinha-me tomado por um dos irmãos.
Após a morte da minha mulher e a enorme dor que se apossou do meu coração passei a viver uma solidão enorme, nada substituía a perda que tinha tido.
Os netos começaram a crescer ao mesmo tempo que as memórias se atenuavam e então conheci uma mulher, ainda jovem, de quem me apaixonei outra vez abrindo assim novos jardins na minha alma. A paixão do momento transformou-se num novo amor que frutificou em novos filhos que, ironia do destino, tinham a idade dos meus bisnetos.
E começo a ter desgostos atrás de desgostos, os meus filhos começaram a morrer, tinham chegado á idade normal das pessoas terminarem os seus dias em paz. Enterrei um neto que tinha partido devido a uma doença terminal e os outros estavam a envelhecer.
Eu já era um fenómeno de família que, por acordo tácito, não faziam muita propaganda e até ajudavam a ultrapassar as barreiras burocráticas. Tinha tido uma acusação de burla quando tinha ido reclamar a minha pensão com o meu aspecto de 40 anos e a idade no BI dizia 120.
E começo a assistir ao definhar do meu segundo amor até á sua morte. Pessoa doce que me acompanhou e compreendeu sempre, amparando-me carregando comigo a minha cruz.
Durante estes anos todos passei a ser um observador da história do mundo e das poucas-vergonhas que os políticos faziam apara reescrever a história, retorcendo os factos, eu como testemunha no tempo ficava cada vez mais enojado com uma sociedade cada vez mais poder e frívola.
Nova revoada de desgostos em série. A morte da minha segunda mulher, dos meus netos, os meus filhos do segundo casamento começava a envelhecer tendo um entretanto falecido de uma morte prematura que a medicina não conseguiu resolver.
Começo a viver o dia-a-dia, tenho aventuras com mulheres de ocasião, refugio-me na solidão, tenho medo de amar e de ter descendentes. Já nem acompanho o desenvolvimento da minha família, não os quero conhecer, vivo de um fundo de uma fundação obscura criada para o meu sustento.
Mas a vida é muito forte e um dia, mais uma vez, uma mulher se travessa no meu caminha. Uma das mulheres de ocasião, de quem eu me servi repetidamente, entra na minha vida. Eu era a sua tábua de salvação e eu não tive coragem de a afastar, a ela e ao seu pequeno filho que me olhava com uns grande olhos negros. Amparei-a e desse amparo nasceu um carinho que voltou a despontar em amor. Cada filho novo que nascia dessa relação eu chorava de dor e de amor. Filhos que eu iria criar e enterrar. Doce mulher que quis viver e trazia-me o purgatório outra vez.
E mais uma vez perdi o meu amor e a acumulação de dor foi de tal ordem que fui internado durante 6 meses num estado mental de demência completa.
Recuperei, voltei a viver. A vida já só se limitava a ler, escrever e tratar de uma ou outra actividade normalmente relacionada com o coleccionismo. Divertia-me alguma programação pois mantinha o meu cérebro activo e até era bastante cativante ser o guru de linguagens de programação primitivas nos fóruns de informática. A minha biblioteca já era imensa, os meus registos enormes. O meu portátil estava sempre ligado a um servidor de vários terabystes de disco, imagens e documentos.
E nesse inferno digital eu visitava os meus, nunca ia ao cemitério visitar pedras nuas e áridas, visitava-os nos milhares de imagens dos meus extensos bancos digitais e assim sem dar por isso, quando passava longas horas no computador e nos fóruns acabei por cair numa cilada e conheci outro ser interessante, uma mulher que eu nunca tinha visto igual, com um conhecimento de informática brutal mas mais do que isso um raciocínio tão acutilante como uma espada de samurai. As longas conversas levaram a um encontro na vida real. Era um patinho feio do género que só seria um cisne no coração de um apaixonado. Que foi o que aconteceu recomeçando a saga da dor.
Neste momento estou só outra vez, enterrei já 4 mulheres, dezenas de filhos, centenas de netos e estou desesperado, não quero ninguém na minha vida, quero estar só. Deixei de me arranjar e tomar banho, não corto o cabelo nem faço a barba e mesmo assim os olhos doces de uma assistente social começaram a pôr o meu coração em polvorosa, e, foi então que tomei a decisão desta minha atitude.
Agora só me resta premir o gatilho….
Quando lerem esta carta já estarei morto e no envelope ao lado estão as instruções e códigos de acesso a toda uma vida.
Adeus….
Jimmy

Solidão...


Sentado á beira-mar olho o sol a pôr-se assim como a minha vida se esgota, devagar e em cores de fogo caindo numa escuridão brutal.
Minha vida corre fluída e cada vez mais rápida no meios de sinapses loucas do meu pensamento. A tristeza invade-me e ganha volume, só vejo a escuridão dos dias.
Suspiro... estou cansado, estou louco... quero dormir.
A dor surda dá o seu sinal ao qual lhe respondo com um sorriso cor de cinza. Ela vem doce e persistente, instala-se e fica.
Olho o sol que não passa agora de um ponto de fogo no horizonte fazendo-me lembrar a agulha de dor que se me espeta no coração, dor de uma vida de enganos e ilusões, batalhas perdidas e vitórias pírricas de uma guerra perdida de antemão.
Inspiro fortemente o ar que me queima os pulmões, cheios de restos de uma vida de cheiros e aromas que me invadem o cérebro fazendo-me soluçar uma saudade negra, dor infernal que me aperta ainda mais um coração que já palpita os últimos segundos.
Boca arrepanhada num rictus de uma dor que não existe e é profunda, o ar a começar a faltar, o arfar de quem vai morrer.
O horizonte é já uma linha negra dividindo o negrume de um oceano de vida á escuridão de um céu sem estrelas apenas pejado de corpos mortos.
Balbucio um sorriso o ar cada vez mais escasso, morro e suspiro. Suspiros de um alívio que me queima a consciência.
Fecho os olhos e adormeço. Sono sem sonhos, de nada para o nada...
.....
- Mãe! Aquele homem está a dormir no murinho, pode cair ao mar...! Não é mãe??
- É sim filha! Existem pessoas que não têm lugar algum para viver.....