O velho leopardo quedava-se imóvel no seu tronco preferido da maior árvore das redondezas. Vigiava a savana pachorrentamente, estava calor, o sol estava a pique queimando a erva seca, secando as gargantas, asfixiando a respiração. O calor subia dançando ao sabor de uma leve brisa ardente e transformando as imagens no horizonte em bonecos articulados por fios de calor. O velho leopardo arquejava lentamente, olhos semicerrados sonhava com glórias antigas, caçadas fenomenais, as fêmeas da região que ele de vez em quando se sentia compelido em perseguir e essencialmente sonhava com a sua adorada savana, terra de contrastes, ora verde e fresca ora queimada pelo sol, a sua cor parda que tudo escondia, que tudo disfarçava.
A sua vida era calma, até os seus adversários de caça não o incomodavam muito, havia um conjunto de regras não escritas que os grandes animais respeitavam normalmente.
O velho leopardo deitado no seu tronco preferido começou a sentir um pequeno desconforto, uma pequena dor, uma moinha a roer-lhe o estômago, a fome a instalar-se começando a destruir-lhe a disposição trocando a placidez por um estado de alerta, o olhar atento, a busca iniciava-se. E tudo isso sem mexer um músculo, notando as alterações apenas nos olhos. Fixos no horizonte, fixos nos detalhes até algo lhe despertar a atenção começando assim o ritual da caça.
A presa deambulava pelo capim seco dando-se ao luxo de escolher as ervas menos secas, aquelas que ainda retinham alguma humidade. Mordiscava-as delicadamente e ia-se alimento. A jovem presa de pelo castanho escuro destacava-se do imenso amarelo torrado da savana chamando a atenção do leopardo que se quedava imóvel observando, medindo, analisando. O velho leopardo se tivesse consciência julgar-se-ia um filósofo, um analisador de comportamento. Essas capacidades não só o divertiam como contribuíam muito para o seu sucesso.
A fome já se tornava incómoda fazendo-o roncar de impaciência, gesto descuidado que provocou um aumento do silêncio na savana.
O amarelo espalhava-se para além do horizonte entrecortado por parcas árvores totalmente despidas de folhas embora algumas estivessem flamejantes com as sua flores vermelhas. O vento tinha parado, os grilos calaram-se e até a irreverente macacada se calou, um dos grandes tinha-se manifestado e isso significava perigo, significava que alguém ía morrer, que alguém seria sacrificado para os outros viverem. Secretamente todos desejavam que fosse o parceiro do lado mas consciência é uma coisa que não perdura nas espécies destinadas ao sacrifício. A vida correu plácida derramando em nova aragem de ar asfixiante.
A presa aproximou-se lentamente da árvores, aquela nesga de sombra atraia-a sedutora, estava cansada e com calor, estava feliz e era jovem.
O velho leopardo ondulou e deslizou o seu corpo para posição de ataque de uma forma tão subtil que nem um raspar na casca da árvore provocou, apenas uma ligeira alteração na forma do seu corpo embora envelhecido ainda era vigoroso.
Duas vidas se juntavam, o destino parecia inevitável, a natureza seguia o seu rumo, o ataque era inevitável. O leopardo começou a tremer, músculos retesados prontos para a acção, a antecipação do gosto fresco de sangue quente da sua vítima fazia vibrar de excitação, de antecipação. O prazer era imenso, a adrenalina sufocava-lhe o cérebro, pacientemente esperava o momento certo.
A presa mordiscando ervas tenras passeava-se placidamente quando algo lhe desperta a atenção, uma vibração,num pressentimento, uma sensação. Não está só, algo a observa, algo a deseja, a inquietação a instalar-se. Procurando em seu redor nada vê, seus olhos perscrutam as redondezas e o nada é-lhe devolvido em tons de amarelo torrado. Já se acalmando levanta a cabeça, com graça, movimento fluido de presa e olha para cima.
O velho leopardo sente uma descarga a percorrer-lhe o corpo, um sentimento electrizante imobiliza-o. Os olhos do leopardo e presa encontram-se finalmente. A presa sorri, tímida mas decidida. O leopardo semicerra os olhos ameaçadoramente e continuam a olhar um para o outro. Esperando um movimento e comunicando com expressões de linguagem corporal.
A presa, com graça manteve-se decidida no mesmo local, as ervas eram aí mais verdes e sem deixar de mirar o leopardo desafiou-o continuando a mordiscar mas sem nunca desviar o olhar.
O velho leopardo levanta-se lentamente, espreguiça o seu velho corpo ainda flexível e salta para o chão aproximando-se lentamente da presa. Estava fascinado, aquele olhar fazia-o sonhar, memórias antigas, memórias doce. Em posição de ataque aproximou-se, o cheiro da presa embriagava-o, o corpo cheio de adrenalina. Lentamente aproximou-se, estacou a menos de um metro, o campo de visão totalmente preenchido pelo corpo da presa, o olfacto saturado do seu aroma, o velho leopardo rugiu:
- Amanhã é outro dia!
Deitando um último olhar deu meia volta e afastou-se, com uma dor surda a roer-lhe as entranhas.
21 de Abril de 2015
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Nobita escreveu: