Os dois encontravam-se naquela esplanada junto ao passeio pedonal que serpenteava ao longo da orla marítima. Sentados nas suas cadeiras, virados para o mar iam bebendo as suas imperiais, seis copos jaziam vazios espalhados pela pequena mesa que os servia. Iam beberricando pois aquela sede avassaladora há muito que se tinha afogado naquela enxurrada de cerveja libertando aos poucos as suas memórias.
- Então o gajo lá bateu as botas?
- Sim! Responde tristemente Jonas, não o tinha conhecido intimamente mas do que conheceu deu-lhe a ideia de ser um gajo porreiro. Assim de um momento para o outro!
- Para ele os problemas acabaram! Morrer é uma chatice mas o que tem de bom é que os problemas ficam cá todos!
- Será? Ninguém voltou para contar!
- Se deixaram de ter problemas porque haveriam de voltar?
- Para os resolver...
- Não sejas tosco! Achas que alguém no seu perfeito estado mental voltaria a esta terra para resolver os problemas que tinha deixado? Morreu, prescreveu! São como as dívidas!
- Não sei! Isso vai depender de muita coisa! Existe o outro lado ou não? Tu próprio admites que existe ao dizer que do outro lado os problemas prescreveram, atenta bem ao que disseste, prescreveram e não desapareceram.
- Claro que existe o outro lado, eu acredito no céu e no inferno, pelo menos alguma coisa parecida. Andarmos aqui e desaparecer tudo? Custa-me a crer.
- Custa-te a crer não, queres crer, tens fé, agarras-te a isso por causa do terror da morte, terror do desconhecido.
- E tu? Não me venhas dizer que não tens medo!
- Medo? Já tive! Agora temo mais a passagem, a dor, a angústia da morte. Sabes, quando estamos perto o corpo reage, o sacana do instinto de sobrevivência a tomar as rédeas. Depois chega a uma certa altura que aceitas. Passei uma vez por isso. A angústia terrível do vou morrer, aceitar a situação, a calma que nos invade, pelo menos a mim invadiu-me, e a vontade de dormir e ... deixar-me ir!
- Tretas! Estás aqui e não foste! Reagiste, tiveste tanto medo como os outros.
- Já não tinha medo, estava mais chateado, ia-me embora sem fechar as contas, sem me despedir. O resto já não me interessava.
- E porque não morreste?
- Porque percebi que se me virasse para o lado e dormisse um bocadinho acordaria nos braços de alguma maluca, lá no paraíso dos marujos, resolvi não dormir, manter-me desperto.
- E...?
- Deu-me tempo para resolver uma questão. A burrada que tinha feito na auto-medicação e numa sugestão feita por um gajo que assistia a tudo com os olhos arregalados de terror. O gajo iria ter uma data de chatices se eu morresse, as papeladas que teria de preencher. E, na boa verdade, ninguém gosta de ver um gajo morrer e estar impotente sem saber o que fazer.
- Mas salvou-te? Como?
- Perguntou-me se eu não estaria desidratado! Eu pensava que era ataque de coração por isso tinha tomado dois Capoten, tudo á bruta, mas era desidratação extrema. Tomei uns líquidos para repor sais e açúcar, o nível dos electrólitos e melhorei logo. Fiquei só com o problema da sobre-dosagem de Capoten mas para isso fiquei acordado até a tensão arterial ficar em níveis seguros.
- Quanto tinhas?
- Chegou aos 40/20! Disse Jonas sorrindo.
- Bolas! Disse o amigo olhando para uma miúda que passava em passo de corrida fazendo o seu jogging matinal. Figura bonita de pernas morenas e musculosas, um calção curto de desporto com cavas bem levantadas e uma camisa de lycra bem justinha deixando antever um peito de tamanho razoável esmagado por um soutien de desporto.
- Sim, bolas! Se não páras de te babar quem desidrata és tu e nem essas cervejas te chegam.
- Não me venhas dizer que não olhas para as miúdas, agora és santo, salvaste-te da morte e converteste-te!
- Não sou santo, sou discreto. Ela já tinha passado e agora está a fazer o percurso inverso. E da primeira vez até sorriu do meu olhar babado, agora ignorou-me para eu não correr atrás dela.
Continuaram a beber mais umas imperiais, mandaram vir uns croquetes para lastrar o estômago e terem oportunidade de ter a jovem empregada ao lado deles e tentarem fazer umas graçolas com ela mas depressa perceberam, pelos olhares furibundos, que ela devia ter uma relação com o dono que estava atrás do balcão.
- O gajo era bom tipo! Fiquei chateado e faz-me lembrar, que como todos, para lá caminho!
Não é o morrer que me chateia! É a perda total! A perda de uma vida!
- Não entendo!
- Vê a coisa do seguinte modo. A alma existe, vamos supor que sim, a consciência existe, temos a certeza. Tu tens consciência de ti mesmo, a consciência é o que nos dá a individualidade, o que nos faz rir, chorar, amar etc. Só que a consciência é um produto da função cerebral, assim como o sub-consciente e o inconsciente. Memórias e capacidade de processamento que o nosso cérebro tem além de um sistema operativo espetacular pois actualiza-se, aprende. Hoje já se fazem programas que aprendem e melhora o seu funcionamento com a aprendizagem. O teu cérebro é um computador biológico incrível que guarda muitas memórias e outras são guardadas como sub-rotinas que trabalham ao nível do processador, essas tens pouco ou nenhum controle, um exemplo são os traumas, pequenas rotinas que são despoletadas segundo determinados estímulos.
- E qual a relação que a consciência tem com a alma. Essa também é uma coisa que se fala mas ninguém tem provas, ninguém viu embora haja uns intrujas que falam da aura como se fosse a manifestação da alma.
- Sabes. Eu tento ver as coisas de uma forma racional evitando os dogmas e a fé. Tenho uma coisa que acredito mas para acreditar tenho de ver, e ver pode ser concepcionar. Se uma coisa é conceptível de um modo lógico pode ser que seja possível.
- Viste a alma? Viste a aura? Agora deste em intruja? Não me gozes. Ou acreditas e tens uma religião que te suporta ou então és mais um intruja.
- Sabes! Quando era jovem e caçava, um dia abati um bicho apenas porque estava em cima de uma árvore, era grande e peludo, não servia para nada. Selvagem como era disparei e o desgraçado caiu a meus pés e eu assisti á sua morte. Um ser vivo, pelo brilhante no estertor da morte e eu vi a morte a apossar-se daquele corpo, o pelo perdeu o brilho, deixou de ser um ser vivo para ser uma carcaça que nem as pulgas queriam, abandonavam aquele corpo como ratos abandonam um navio a afundar-se. Naquele momento eu vi, eu vi a vida a ir-se embora, algo abandonou aquele desgraçado.
- Agora que falas disso estás-me a fazer lembrar o funeral do meu irmão. Olhava para ele naquele caixão de madeira, reconhecia-lhe as feições mas não era ele, parecia um boneco, era estranho, ele não estava ali. Disse o amigo com um soluço a embargar-lhe a voz e tentando esconder as lágrimas que tinham teimado em saltar, disfarçou dando um grande gole na sua imperial quase esvaziando o copo.
- É isso mesmo. É essa a diferença, a vida sumiu, foi-se. A vida pode ser a alma. E aí as coisas até batem mais ou menos com as crenças. O meu problema é a consciência. Se a vida ou alma abandona o corpo e não leva a consciência com ela então para que serve viver? Ser bom, ser mau, ser santo, ser putanheiro, é tudo a mesma coisa. No fim morre-se, a consciência apaga-se, a vida que levámos apaga-se e vai tudo para o mesmo caldeirão. Não tem lógica.
- Querias ir para o céu não era? E encontrares aquela miúda a correr para ti... ahahah! Gozou o amigo.
- A chatice é que não consigo "ver" a passagem da consciência do estado vivo para o estado morto. O seja, a consciência acompanhar a tal alma ou aura.
- Isso é um bocado torcido, se a consciência passa para o estado morto então terias os fantasmas. Estou-te a imaginar tu, em forma de fantasma, a espreitar todas as garinas a tomar banho, a vestirem-se! Ahahahah! Aposto que pensaste nisso seu depravado!
- Engano teu! Se a minha consciência passasse para o outro lado ficaria privada de sentidos por isso não conseguiria nem espreitar o meu gato a mijar!
- Não me tinha lembrado disso! Porra que andas muito doido com essas ideias, andas a ver tudo, não largas a presa! E se fosse mais uma imperial?
- Hummmm! Tá calor e eu estou com sede e apetece-me ver os olhos furibundos da empregada outra vez! Dá-me gozo vê-las todas eriçadas de fúria. Uma beleza da natureza, uma mulher enfurecida por causa das graçolas de um gajo! E Jonas dizendo isso chamou a empregada com o seu maior sorriso. Um sorriso já meio tolo de tanta imperial.
A rapariga aproximou-se, cara fechada e pergunta o que desejam.
- O que desejo nunca se realizará por isso contento-me com mais um par de imperiais!
- Um par de estalos leva você se não se portar bem! Exclama furiosa a rapariga.
Jonas pôs a sua cara séria, coloquial e responde com voz calma.
- Menina! Aprenda a aceitar uma brincadeira. A minha afirmação foi uma constatação á sua beleza, não um convite nem proposta desonesta. Um piropo, uma brincadeira apenas. Se cair em saco roto nada se perde nada se ganha.
- Não tenho paciência para idiotas com uns copos a mais!
- Então não trabalhe num local que vende bebidas alcóolicas pois o risco de aturar idiotas maiores do que eu é muito grande. Faça um sorriso e, se calhar, se me apaixonar pelo seu sorriso compro-lhe o stock de cerveja só para o ver outra vez. No fim do dia estarei com uma ressaca e você feliz porque vendeu bastante. O que custa um sorriso simpático? Nada. A única coisa que aconselho é que escolha o alvo do seu sorriso. Dois tolos como nós somos sempre inofensivos, outros não serão. Essa será a sua escolha. Agora traga lá as bejecas e eu juro que não farei mais brincadeiras, respeitarei a sua reserva. Mas tenho pena, você é bonita e já reparei que quando sorri você é a constelação mais bonita deste universo. Dizendo isto, Jonas voltou-se para o seu amigo e perguntou.
- Estava a falar de quê? Realmente já estou a ficar tolo. A garina até pode ter razão em me ter dado na cabeça!
- Estou espantado! A tua lábia para com a rapariga! Deixaste-a confusa! E meio corada!
- Ah!!! A famosa consciência! Imagina a alma/vida como energia que já vimos se solta quando morremos. Agora, ás vezes sou mesmo um idiota, imagina a consciência como uma base dados da vida mais uma coisa equivalente a um programa auto-executável. Em suma, linhas de programa que podem ser codificadas em binário ou níveis de energia. Imagina essa vida/alma ser uma forma de energia, codificada com o binário da consciência? Diz lá se não é linda esta visão?
- Tenho de concordar que quando estás com os copos tens umas visões interessante, e por incrível que pareça, até têm lógica. Mas diz-me, como se aguenta isso tudo? A energia a pulsar numa frequência que é a consciência vai acabar por se dissipar, vai acabar por desaparecer. Uns segundos e puffff, desaparece no nada!
- A não ser que nesses segundos que tu te referes o tempo não exista ou esteja congelado. Se o tempo deixar de existir nessa fracção de energia pulsante ela ficará assim eternamente.
- E acreditas nisso? Estás-me a convencer que a eternidade existe? Só falta dizeres que o inferno ou céu existem.
- Nessa forma porque não? Se o auto-executavel ao arrancar te disser que foste uma besta vais ser uma besta eternamente, um bocado infernal não é?
- A cerveja pode tirar-te o juízo mas não te tira a lógica!
A empregada aproximou-se da mesa e olhando desafiadoramente para Jonas pôs dois pratos na mesa, um com a conta e outro com uns amendoins salgados e com um sorriso felino disse?
- Por conta da casa!
- Eu adoro ter razão! Exclama Jonas com o seu sorriso mais maroto e puxa da carteira para pagar quando ouve o seu amigo a dizer com voz aflita.
- Parece que o teu inferno está a chegar! Vem aí a tua mulher e está com cara de poucos amigos!!!! Diz o amigo a empalidecer.
- Ehhhhhh pá!!!! Esqueci-me de a ir buscar! Deve estar uma fera!
- E eu vou-lhe contar que além dessa enxurrada de cerveja meteu-se com todas as mulheres que por aqui passaram e ainda mais grave, vou aconselha-la a levá-lo ao psiquiatra, está aqui há uma hora a falar da alma, da morte. Até me arrepia! Exclama a rapariga com ar aliviado com a aproximação da companheira de Jonas.
- Adeus vida! Choraminga Jonas. Adeus bela constelação que vais assistir a esta minúscula estrela ser engolida pelo buraco negro que aí se aproxima, inexorável. Um fim tão trágico para uma estrela emergente tão brilhante....
- JONAS! ESTIVE HORAS Á TUA ESPERA! E ESTÁS BÊBADO!!!
- Desculpa-me querida! Estive a olhar para uma constelação e apenas morri. Estive esta eternidade toda num loop auto-executavel sem ter noção como o tempo lá fora corria a sua vida normal. Só tu minha querida para me fazeres ressuscitar....
- É preciso ter muita lata! Exclama a empregada entre o chocada e o divertida.