Acordei
Sonos, sonhos revoltos
Distantes, escuros, sem sentido
Acordei, sem ver
Instinto, o calor procuro
A fome, a teta procuro
Empurram-me, gano mansamente
Língua quente, molhada me enrola
Chupo, sugo, mordo
A fome, insaciável corrói
O fundo do buraco, negro
A luz que entra fugaz
O mundo se revela
A morte se revela
Gritos, guinchos, sangue
Irmãos que desaparecem
Num terror em forma de focinho
Sobrevivo, órfão de irmãos
Órfão de mãe que uma besta levou
Um guincho, um grito, um embate
E a morte chegou
Deixando-me só
Filho de pai incógnito
Filho da matilha
Que se dispersou sem nobreza
No dia em que o cheiro morreu
Para eu nascer
A fome visitou-me
A fome deu-me coragem
Saí para o mundo
Enfrentei a luz, corri, patas pequenas
Ser mal feito, desengonçado
Filho do acaso, de pais do acaso
Corri
A fome sempre presente
Cheiros, aromas e perfumes
Desconhecidos, atraentes
Corri, pequeno e assustado
Desesperado
Comida, o cheiro de algo
Instinto me chama, comida
Sacio-me de sabores estranhos
Primeira lição de uma vida
Nunca deixar de olhar
Atacam-me aos gritos
Navalhas cortam-me o corpo
Gritos ensurdecem-me, atordoam-me
Corro, fujo, pânico, terror
Ser estranho me ataca, miando
A vida continua, numa guerra
Surda e mortal
Cheio de cicatrizes cresço
Roubando comida
Ao gato das redondezas roubo
A minha sobrevivência
Com o tempo a minha área cresce
Diferentes pontos de comida
Diferentes cheiros, ruídos e sons
Aquele gravado que me faz correr
Em pânico
Numa saudade imensa
Aquela língua quente e reconfortante
Não me sai da memória
Desapareceu com esse som
Mais solto, mais atrevido
Percorro as ruas, marcando
Sem pudor
Todos os cheiros que me desafiam
Não resisto
Marco o mundo
Marco o universo
Até o gato me respeita agora
Cresci
A fome que não desaparece
O frio que aperta
A chuva que me encharca a alma
No meu pequeno buraco
Meu berço
Tirito de frio
Dias cinzentos cobrem o universo
Dias de inverno tolda-me o espírito
Tenho fome
Estou sempre com fome
Lambo as minhas patas
Distraindo-me com o meu sabor
Adormeço cansado, sonhando
Dias idos, a felicidade ida
Teta cheia de leite, carinhosa
Calor e carinho
Sonho ganindo mansamente
O tempo passou, os anos passaram
A marcação do universo despertou
A ira, a raiva, a inveja
De outros
Párias como eu, donos do mundo
Poderosos no mundo, em matilha
Perseguiram-me, atacaram-me
Fui sobrevivendo
A fome atacou-me de novo, sempre
A morte do meu amigo, o felino
Sempre mal disposto mas tolerante
A sua morte no meio da matilha
Inglória
Deixou de encher o prato
Pedaço de carne e pelo ensanguentado
No chão exposto
Ratos e formigas em festim
Chorei a sua partida
Lambi-o tentando reviver
Desesperadamente
Aqueles olhos, aquele miado
Em vão
A vida era morte outra vez
O dia raiava, o sol brilhava
Algo no ar era diferente
O cheiro
A loucura que entorpece
Meu corpo estava estranho
A minha mente não me obedecia
Aquele estranho odor em tudo penetrava
A fome esquecida
O medo esquecido
Corri
Procurei desesperadamente
E vi-a
Era ela, ser pulguento
Ar miserável que corria
Perseguida pela matilha
Correndo e espalhando o aroma
Que a enchia de beleza
Era ela, o meu destino
O instinto foi mais forte
Corri e atirei-me que nem um louco
Cheirei-a e a felicidade entranhou-se
A alegria, a loucura era tal
Que meus quadris se moviam
Numa dança louca, erótica
Eu queria-a
Era minha
Montei-a
E fui violentamente atacado
O chefe da matilha
Dono de tudo
Besta enorme filou o meu quadril
Dei luta
Não tinha medo
A paixão tudo dominava
Lutei contra a besta
Lutei contra a matilha
Exangue, no chão, vi
Um miserável ser penetrando
A paixão que era minha
A besta, a matilha, eu
Distraídos na refrega
Numa luta inglória, sem fim
Fomos ultrapassados
Pelo inútil que ninguém deu crédito
O cheiro desapareceu no ar
Trancado pela penetração do inútil
Agora agarrado pelo destino da erecção
Que o aprisionou ao destino
Morto pelos seus
Numa vingança impiedosa
Seu sémen sobrevivendo
No útero de uma sem destino
Parindo um dia numa cova escura
Afastei-me sangrando
A refrega tinha deixado as suas marcas
O sangue pingava
Coxeava
A dor penetrava no cérebro
Acutilante
Cambaleando entrei
Um buraco escuro
Fresco
Enrolando-me confortei-me
Lambi as minhas feridas
Recordando alegrias há muito idas
Aquela língua quente e carinhosa
Um som diferente
Um ser diferente
O terror a avançar, mostrei os dentes
A voz acalmou-me
Deu-me um pedaço de comida
Gani
Deixei-me ir.
A escuridão aumentou
Lentamente
O frio invadiu o universo
A vida transformou-se numa toca
Um buraco que se estreitava
Até o negro tudo invadir
Gani pela última vez
Um último adeus
A uma vida de cão.
Jimmy, 04 de Setembro de 2016
A navegar
Jimmy, olá!
ResponderEliminarGostei desse cão meio desesperado, perdido, vagueando por aí esvaido e esventrado por falta de emoções fortes, que nada têm a haver com a fome, frio, silencio, alienação...
Um Homem tal como o cão também gane, quem sabe por falta de esperanças perdidas.
Beijo.